Cena do filme Oroboro

Grande Sertão: Veredas, peça encenada pelo 12º ano do Colégio Rudolf Steiner de Minas Gerais (foto divulgação)


Poesia, encantamento e descobertas sobre si e sobre o outro exalam de cada poro do documentário Oroboro. Dirigido pelo artista visual e cineasta mineiro Pablo Lobato, o filme estará em cartaz em São Paulo, Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre entre 20/03 e 26/03 (veja abaixo as salas e horários).

A obra registra o processo de construção coletiva de duas peças de uma escola Waldorf de Nova Lima (MG): Grande Sertão: Veredas, obra de Guimarães Rosa montada por uma turma de 12º ano, e A Flauta Mágica, clássico de Mozart encenada por adolescentes do 8º ano.

Na pedagogia proposta por Rudolf Steiner, a arte é indissociável da aprendizagem e se faz presente durante toda a travessia escolar. A criação de uma peça de teatro coroa o encerramento do ciclo no Ensino Fundamental e no Ensino Médio. Oroboro capta a intimidade dos dois processos e revela o tanto de presença, empatia e alegria podem brotar quando a experiência sensível acompanha a formação humana.

Em tempos de almas adoecidas por excesso de telas e escassez de relações significativas, é um alento constatar que, sim, pode ser diferente.  “Eu não enxergo outro caminho que não seja a experiência da criação e da arte junto à formação.  Os processos de vida exigem muita sensibilidade, muita criatividade. As escolhas que a gente faz, desde quando a gente acorda até a hora que a gente dorme, são do campo do sensível”, afirma Lobato em entrevista ao Blog Micael.

No bate-papo, o diretor relata o espanto que fez Oroboro nascer e celebra o fato de poder mostrar ao mundo, por meio do cinema, algo tão potente e transformador que normalmente não atravessa os muros das escolas.

Por Katia Geiling

Você conta que o filme parte de um espanto, do espanto do seu encontro com aqueles jovens de 12º ano durante o processo de criação do Grande Sertão: Veredas, em 2018. O que te espantou?
Esse espanto é o motor que me guia durante esses anos todos. Um dos alunos dessa turma é meu afilhado. Um dia ele me liga e conta que estavam no momento dos ensaios e precisavam de alguém para fazer um registro da apresentação. Eu me lembro que ele falou ‘a gente tem 700 reais e não está conseguindo alguém para fazer por esse preço, precisava ser alguém mais próximo que pudesse colaborar’. Naquele momento, eu vinha trabalhando muito mais com as artes plásticas do que com cinema, mas tinha alguns equipamentos disponíveis. 

Eu vou a um ensaio com uma câmera e quando me encontro com aquele grupo de adolescentes encontrando a embocadura para Grande Sertão: Veredas fico completamente espantado, completamente encantado e não consegui sair mais de perto deles.

Eu me lembro que voltei para casa e comentei com a minha companheira na época que ia ter que fazer uma pausa em tudo o que vinha fazendo. Tinha uma urgência no ar. Eles estavam a alguns dias da apresentação e não existia projeto, não existia recurso, mas nasceu em mim um desejo de transformar aquilo num filme. Então eu precisei em poucos dias conseguir um grupo de colaboradores, colegas, alguns equipamentos para fazer um bom registro da apresentação.

Tinha algo ali naquela atmosfera, algo do campo do espiritual mesmo, que estava nos gestos, nos olhares, na escuta, no modo como eles se escutavam, que me tocou muito já naquele primeiro momento.

Eu tive uma infância no interior, próxima à natureza, uma infância muito rica, mas na escola eu não vivia uma experiência com os meus colegas de tanto respeito como eu via naquela turma, ainda mais num momento de criação, onde aflora muita sensibilidade e tensão. Isso me pegou, e eu quis continuar próximo a esse grupo.

Esse respeito, essa capacidade da escuta e essa sensibilidade que você notou, de onde acredita que venham?
Eu acredito que o que possibilita essa qualidade que a gente está tentando nomear como presença, como sensibilidade, como escuta, acho que essa condição é alcançada quando o processo pedagógico entende que o estudante é a fonte da pedagogia. Outro ponto que me parece fundante para que isso seja possível é um entendimento dessa comunhão possível entre arte e formação humana. O Steiner tinha isso muito presente nas falas dele. É muito diferente do que a gente vê em algumas instituições ou projetos, quando a arte decora um processo pedagógico. O que acontece ali diante de nós é uma comunhão. Ao criar algo, ao fazer um busto de argila, ao fazer um TCC ou até mesmo num convívio de uma aula de Matemática, tem um processo de transformação contínua.

Alegria é um dado muito importante também. Alegria como esse momento em que a gente deixa de ser muito a gente, a gente se mistura com o outro. Eu me lembro agora, falando com você, quando o Ravi, que é esse aluno que apresenta o TCC, ele chega para o grupo com a ideia do coração que eles usam no figurino.

O Ravi chega com os olhos brilhando, meio correndo, falando da ideia. E os colegas escutam e, ao mesmo tempo, celebram aquilo. E um deles fala, ‘nossa, Ravi, que ideia incrível que você teve!’ E ele, sem titubear, fala: ‘Eu tive não: a gente teve! Eu só manifestei’. Então, tem esse espírito colaborativo no grupo também, e era encantador. Isso acontece quando o interesse não é limitado por interesses do ego.

O interesse está voltado para aquilo que se cria. Isso acontece quando a escola compreende isso na experiência, não na teoria. Eu acho que fica muito mais possível a gente criar esses ambientes, essas condições.

O filme mostra bem o papel do educador no processo de teatro, tanto na peça do 12º ano quanto na do 8º ano. O que você pôde observar em relação a isso?
Eu tive a sorte de estar rodeado de professores que também me encantaram muito. Bernardo Zama, que é o professor de classe que estava conduzindo a turma que fez A Flauta Mágica, foi o professor da minha filha, era a classe dela no processo. Minha filha entrou no Jardim e acabou de se formar. E o Bernardo foi um professor inesquecível para mim. Do 1º até o 8º ano, ele teve uma força e uma presença de espírito que raramente vejo no mundo. Ele exercia essa autoridade amada. Ele põe isso em prática de uma forma que eu vejo reverberando na minha filha hoje.

A professora de teatro, a Paula Manata, é uma artista. Você ter uma professora artista… Steiner falava que é importante que o professor viva a experiência da criação, que ele tenha isso como processo de formação pessoal. Quando você tem um professor artista, isso ganha um sentido muito claro. Porque a Paula, como professora e como artista, tem uma certa dimensão que errar é um modo de ir. Então, tem esse despojamento do mestre ignorante de aprender ao ensinar. Isso era muito bonito de acompanhar e de registrar.

Como a arte pode contribuir para que crianças e jovens tenham um processo de formação mais saudável?
Eu não enxergo outro caminho que não seja a experiência da criação e a da arte junto à formação.  Somos todos de alguma forma artistas. Tem uma certa diferença em relação ao tempo que se dedica à arte. E aí a gente vai chamar alguns de artistas e outros não. Mas os processos de vida, eles exigem muita sensibilidade, muita criatividade.

As escolhas que a gente faz, desde quando a gente acorda até a hora que a gente dorme, são do campo do sensível. O tempo todo a gente está atravessado por um aroma, por uma música, por uma entonação, um gesto que te toma mais atenção do que outro. O tempo todo a nossa formação necessariamente passa pelo sensível.

Então a gente não considerar isso num processo pedagógico é muito limitador. São vários pontos que deixam a experiência do sensível tão urgente hoje em dia. Um deles é a possibilidade de você se alargar diante da alteridade, de perceber o outro e respeitar o outro, a diferença. O processo de criação necessariamente leva para regiões da linguagem e da sua estrutura psíquica que você desconhece.

E é nesse lugar que você desconhece que esse alargamento pode acontecer. A capacidade de ter empatia pelo outro. O maior capital nosso é o capital humano. A gente precisa entender isso. A gente só vai sair desse adoecimento como sociedade se a gente entende isso. É o capital humano.

E esse capital humano está adoecido porque as pessoas não estão comendo bem, não estão dormindo bem, não estão se alegrando. E elas não se relacionam bem. As pessoas estão cansadas. E elas não têm corpo para ter empatia, para ter escuta. Acho que o processo de formação pela arte nos dá um pouco mais de estrutura para isso.

Por que você escolheu trazer no filme a dualidade entre a natureza e aquele ambiente ao redor da escola, cheio de arranha-céus, algo bem contrastante?

Existe uma força, uma potência nesse encontro do Oroboro que vem da suavidade. E essa suavidade se manifesta de várias formas. A natureza é uma delas. Ela está muito próxima dos processos pedagógicos antroposóficos e muito distante das experiências que a gente tem tido hoje de trabalho, de relação humana. A natureza há muito tempo foi colocada como uma coisa fora de nós. E eu quis trazer isso de uma forma não forçada. Bastou eu observar. Foi a observação que me levou a esses estados da relação da natureza com os alunos. Os alunos estão muito atentos a ela. Eles tocam o filhote de passarinho, eles tocam a asa da aleluia, eles tocam a pele do sapo, eles observam o morcego, eles observam os pássaros, os peixes. Eles se interessam por isso. E esse interesse, essa forma de olhar para a natureza, é uma forma de entrar em comunhão com ela. E é a forma que contamina a câmera do filme também.

Que bom que isso será mostrado ao mundo por meio do cinema.
Sim, acredito muito que o espaço do cinema é um espaço formativo. Espero que boa parte dessa atmosfera que pude estar próximo chegue até as pessoas e as toque por um viés que não é discursivo. O filme não traz grandes argumentos em torno de uma educação antroposófica ou uma educação voltada para a arte. Isso acontece diante de nós. Oroboro é um convite para a comunidade Waldorf sair da sala de aula e ir para uma sala de cinema ver esse filme. Esse movimento talvez dê mais chance de oferecermos ao mundo um pouquinho desse aroma tão lindo, dessa espiritualidade, dessa qualidade de presença, que sabemos que é possível e que vemos em nossos filhos.

 

OROBORO

Sessões nos cinemas
20 a 26 de março de 2025

São Paulo – Espaço Petrobras de Cinema
14h00 | 20 a 26/03 (todos os dias)

São Paulo – Centro da Terra
18h00 & 20h00 | 26/03 (terça)

Salvador – Saladearte CineMAM
16h35 | 20 a 25/03 (quinta a terça)
17h45 | 26/03 (quarta)

Porto Alegre – Cinemateca Paulo Amorim
17h00 | 20, 22 e 25/03 (quinta, sábado e terça-feira)

Belo Horizonte – Una Cine Belas Artes
14h00 | 21, 22, 23, 25 e 26/03 (sexta, sábado, domingo, terça e quarta)
18h00 | 21, 25 e 26/03 (sexta, terça e quarta)